quinta-feira, 11 de outubro de 2012


FARAH DIBA

  
           Enganados pelas situações de sorte, desdenhamos avisos e sempre desconfiamos demais. Chegam, às vezes, com lágrimas insistentes no batente da porta e geralmente estamos dormindo no quarto ao lado... Profecias anunciadas que ferveriam as contas de um travesseiro morno, em calendários arrancados e dias reclamados. A maioria das pessoas pouco têm, muitos nem conseguem ter um lar... E o que importa neste mundo? Ser bonito, morar bem e ter dinheiro, valores enlatados goela abaixo. Mark Twain talvez quisesse reportar-se aos poucos insones que abrem as pálpebras sem medo!
           Estava preparando-me para esvaziar a última gaveta de uma mesa metálica com tampo de vidro 18mm, resistente às manifestações inesperadas de quem quer que aparecesse, algum  fantoche esporádico alardeando demissões, por exemplo. Em certos momentos de desequilíbrio total, quando aparecia o próprio diretor em seus ataques histéricos, pensava que nem aquela barreira de sílica verde moída e cozida em altas temperaturas resistiria. Pelo menos naquela solitária sala muitos sapos e impactos éticos foram devolvidos! Assim como nunca ascendera, preparava minha retirada: em poucos minutos tomaria o trem-de-prata em direção à cidade de onde nunca deveria ter saído... Levaria apenas objetos pessoais: um capacete do Senna, um mapa do Brasil em gemas com porta canetas e um notebook, quando suavemente na porta, encostada pediu licença e entrou: “Doutor, estou tão chateada com sua decisão, por que o senhor vai embora?” Curiosa hierarquia, ela era a senhora e um jovem de 30 anos chamado como tal pelo tom triste de quem arrisca uma aproximação, após descontraídos dois anos. Ficou parada, exigindo uma resposta: por que as coisas têm que ter sempre um motivo, explicações? Emoções de sorte raspam sentimentos! As de azar nem menciono. Era uma funcionária exemplar, onde careciam exemplos de virtudes, porém, os que geram lucros são diferentes. Uns apressados no atraso; outros pontuais e medrosos que imaginam-se eficientes. Poucos sabem não ter brilho. Faltam idéias que simplifiquem o óbvio: respeitar os colegas! Distribuir pelo menos um pouco as riquezas acumuladas neste mundo. Ela raramente se atrasava quando presente, informal ou bem alinhada, se necessário fosse ficaria após o expediente sem reclamar, atenta, redigindo rápido. Falava francês e espanhol comercial. Trabalhara numa joalheria presente em muitos aeroportos por quase duas décadas e agora secretária Sênior de um experiente Diretor Executivo, por raras vezes, auxiliando-me na tarefa de intruso. Havia uma outra nova até cursando MBA, longe se comparada a ela. Sim, algumas pessoas realmente têm classe, seja no trabalho ou na vida pessoal, difícil explicar, talvez pelo vestir ou falar ou porque respeitem os mais humildes com atitudes concretas, era assim. Respondi: “Que bom vê-la nesta sala, me fale de Farah Diba!” Surpresa, baixando o fino óculos branco indagou: “Quem? A Imperatriz do Irã?” Sorri pela curiosidade de muito ter ouvido por terceiros e nunca perguntado: “Isso! Ou prefere aquela Diva do cinema? Alguma cliente roqueira, de quem quiser lembrar hoje”. Enquanto vinha em direção à poltrona carregando inseparável pasta transparente no braço direito meio que colada ao peito, voltaram as palavras de um modesto faxineiro, que certo dia, numa rua bem próxima ao Parque Lage no Rio de Janeiro, me falou do nada, varrendo a calçada: “Seu Guto, o Sr. que mora na Lagoa, sabia que neste prédio aqui morou a Fernanda Montenegro?” Ainda surpreso alimentei o diálogo: “Mesmo, e você gostava dela?” “Quem não gosta de uma atriz como ela!? Sempre nos tratava bem, não era metida!” Surpresa maior: disse que poderia ser analfabeto mas sabia “identificar” o comportamento e as pessoas, disse que morara ali vinte e cinco anos antes e nem poderia recomendar-me assistir Central do Brasil...
           Indagou curiosa e com olhar de quem mergulha no vago pensar: “Por que pergunta agora? Foi passado, que medo que tive!” Ora, por que medo? Começamos a conversar: “chegou de repente acompanhada de uma consorte,tão simples, sentou-se calmamente e disse admirar as jóias brasileiras. Horário de almoço e eu sozinha com o gerente (a outra vendedora de licença médica!) nem sabíamos quem era...”. Continuou fazendo seu trabalho até que o telefone soasse e o colega voltasse desnorteado, colocando-se a total disposição, desculpando-se pela carência de funcionárias... Fechou a loja e autorizou que buscasse os cofres mais Vips. Lá fora seguranças iranianos e discreto movimento de uma São Paulo, ignorados. Foi desvendando o ocorrido dando ênfase à simpatia de Farah Diba, que falava um francês impecável, sem sotaque e ficaram pacientemente reluzindo mãos femininas ou espalhados sobre a mesa, quase caindo, os lotes mais caros que imaginassem. “E por que o medo?” Insisti. “Ah! Era tão nova e inexperiente e todas aquelas jóias ali, juntas, tão valiosas e exclusivas e o gerente ora trazendo ora em pé feito dois de paus; jamais mostrara tantas e de repente, um colar de safiras cravejado de diamantes deslizou por minha culpa, indo direto ao chão! Fiquei tão nervosa!” Quebrada era muito valiosa aquela peça... Ela rápida abaixou-se e apanhou o colar sobre o alto carpete, entregando-o a quem preferia vê-lo quebrado: lembraria Persépolis... "Experimentava sem pressa e conversavam em farsi, o que nada entendia, no reflexo dos espelhos". Levou quase que todas as coleções, assim como quem simpatiza com alguém ou algum país e não procura motivos. A comissão recebida foi suficiente para compra de um apartamento de sala e dormitório (com garagem), no bairro de Santana, sobrando ainda valores que possibilitaram segunda viagem a Portugal, de um jovem e apaixonado casal, pela Varig. Ouvir estórias de alguma época, acerca de personalidades, dividindo água mineral em copos descartáveis - madura amiga. Às vezes, a sorte traz companhias sinceras que nenhum trabalho compensaria conquistar. Traz dinheiro também e pode nem importar, uma década depois.  
          A diferença entre viajar numa suíte sobre trilhos ou em cabine comum é uma sutil cama de casal! Claro que qualquer beliche ou poltrona com visão de mundo movendo-se pode servir. Mas justiça seja feita: nada como dormir agarrados com um balanço constante, sem pressa de chegar a lugar nenhum... Procurem a sorte e durmam sempre com ela! Senão viverão deprimidos como o , guardando dinheiro como chatos e se espalharão apenas com o espaço. J

                                        06 de abril de 2004.
                                       Abraços do Dr. Guto