FARAH DIBA
Enganados pelas situações de sorte, desdenhamos avisos e sempre
desconfiamos demais. Chegam, às vezes, com lágrimas insistentes no batente da
porta e geralmente estamos dormindo no quarto ao lado... Profecias anunciadas
que ferveriam as contas de um travesseiro morno, em calendários arrancados e
dias reclamados. A maioria das pessoas pouco têm, muitos nem conseguem ter um
lar... E o que importa neste mundo? Ser bonito, morar bem e ter dinheiro,
valores enlatados goela abaixo. Mark
Twain talvez quisesse reportar-se aos poucos insones que abrem as pálpebras
sem medo!
Estava preparando-me para esvaziar a última gaveta de uma mesa metálica
com tampo de vidro 18mm, resistente
às manifestações inesperadas de quem quer que aparecesse, algum fantoche esporádico alardeando demissões, por
exemplo. Em certos momentos de desequilíbrio total, quando aparecia o próprio diretor
em seus ataques histéricos, pensava que nem aquela barreira de sílica verde
moída e cozida em altas temperaturas resistiria. Pelo menos naquela solitária
sala muitos sapos e impactos éticos foram
devolvidos! Assim como nunca ascendera, preparava minha retirada: em poucos
minutos tomaria o trem-de-prata em direção à cidade de onde nunca deveria ter
saído... Levaria apenas objetos pessoais: um capacete do Senna, um mapa do Brasil em gemas com porta canetas e um notebook, quando suavemente na porta,
encostada pediu licença e entrou: “Doutor, estou tão chateada com sua decisão,
por que o senhor vai embora?” Curiosa hierarquia, ela era a senhora e um jovem
de 30 anos chamado como tal pelo tom triste de quem arrisca uma aproximação, após
descontraídos dois anos. Ficou parada, exigindo uma resposta: por que as coisas
têm que ter sempre um motivo, explicações? Emoções de sorte raspam sentimentos!
As de azar nem menciono. Era uma funcionária exemplar, onde careciam exemplos
de virtudes, porém, os que geram lucros são diferentes. Uns apressados no
atraso; outros pontuais e medrosos que imaginam-se eficientes. Poucos sabem não
ter brilho. Faltam idéias que simplifiquem o óbvio: respeitar os colegas! Distribuir
pelo menos um pouco as riquezas acumuladas neste mundo. Ela raramente se
atrasava quando presente, informal ou bem alinhada, se necessário fosse ficaria
após o expediente sem reclamar, atenta, redigindo rápido. Falava francês e
espanhol comercial. Trabalhara numa joalheria presente em muitos aeroportos por
quase duas décadas e agora secretária Sênior
de um experiente Diretor Executivo,
por raras vezes, auxiliando-me na tarefa de intruso. Havia uma outra nova até
cursando MBA, longe se comparada a
ela. Sim, algumas pessoas realmente têm classe, seja no trabalho ou na vida
pessoal, difícil explicar, talvez pelo vestir ou falar ou porque respeitem os
mais humildes com atitudes concretas, era assim. Respondi: “Que bom vê-la nesta
sala, me fale de Farah Diba!”
Surpresa, baixando o fino óculos branco indagou: “Quem? A Imperatriz do Irã?”
Sorri pela curiosidade de muito ter ouvido por terceiros e nunca perguntado: “Isso!
Ou prefere aquela Diva do cinema?
Alguma cliente roqueira, de quem quiser lembrar hoje”. Enquanto vinha em
direção à poltrona carregando inseparável pasta transparente no braço direito
meio que colada ao peito, voltaram as palavras de um modesto faxineiro, que
certo dia, numa rua bem próxima ao Parque
Lage no Rio de Janeiro, me falou do nada, varrendo a calçada: “Seu Guto,
o Sr. que mora na Lagoa, sabia que neste prédio aqui morou a Fernanda Montenegro?” Ainda surpreso
alimentei o diálogo: “Mesmo, e você gostava dela?” “Quem não gosta de uma atriz
como ela!? Sempre nos tratava bem, não era metida!” Surpresa maior: disse que poderia ser analfabeto mas sabia “identificar” o comportamento e as pessoas, disse que
morara ali vinte e cinco anos antes e nem poderia recomendar-me assistir Central do Brasil...
Indagou curiosa e com olhar de quem mergulha
no vago pensar: “Por que pergunta agora? Foi passado, que medo que tive!” Ora,
por que medo? Começamos a conversar: “chegou de repente acompanhada de uma
consorte,tão simples, sentou-se calmamente e disse admirar as jóias
brasileiras. Horário de almoço e eu sozinha com o gerente (a outra vendedora de licença médica!) nem sabíamos quem
era...”. Continuou fazendo seu trabalho até que o telefone soasse e o colega
voltasse desnorteado, colocando-se a total disposição, desculpando-se pela
carência de funcionárias... Fechou a loja e autorizou que buscasse os cofres
mais Vips. Lá fora seguranças iranianos e
discreto movimento de uma São Paulo, ignorados. Foi desvendando o ocorrido
dando ênfase à simpatia de Farah Diba,
que falava um francês impecável, sem sotaque e ficaram pacientemente reluzindo
mãos femininas ou espalhados sobre a mesa, quase caindo, os lotes mais caros
que imaginassem. “E por que o medo?” Insisti. “Ah! Era tão nova e
inexperiente e todas aquelas jóias ali, juntas, tão valiosas e exclusivas e o gerente
ora trazendo ora em pé feito dois de paus; jamais mostrara tantas e de repente,
um colar de safiras cravejado de diamantes deslizou por minha culpa, indo
direto ao chão! Fiquei tão nervosa!” Quebrada era muito valiosa aquela peça...
Ela rápida abaixou-se e apanhou o colar sobre o alto carpete, entregando-o a
quem preferia vê-lo quebrado: lembraria Persépolis... "Experimentava
sem pressa e conversavam em farsi, o que nada entendia, no reflexo dos espelhos". Levou quase que
todas as coleções, assim como quem simpatiza com alguém ou algum país e não
procura motivos. A comissão recebida foi suficiente para compra de um
apartamento de sala e dormitório (com garagem), no bairro de Santana, sobrando ainda valores que possibilitaram
segunda viagem a Portugal, de um jovem e apaixonado casal, pela Varig. Ouvir
estórias de alguma época, acerca de personalidades, dividindo água mineral em
copos descartáveis - madura amiga. Às vezes, a sorte traz companhias sinceras
que nenhum trabalho compensaria conquistar. Traz dinheiro também e pode nem importar, uma década depois.
A
diferença entre viajar numa suíte sobre trilhos ou em cabine comum é uma sutil
cama de casal! Claro que qualquer beliche ou poltrona com visão de mundo
movendo-se pode servir. Mas justiça seja feita: nada como dormir agarrados com
um balanço constante, sem pressa de chegar a lugar nenhum... Procurem a sorte e
durmam sempre com ela! Senão viverão deprimidos como o Xá, guardando dinheiro como chatos e se espalharão apenas com o
espaço. J
06 de abril de 2004.
Abraços do Dr.
Guto