VOCÊ TEM UM GRAMOPHONE?
Domingo fomos jantar no "Outback",
ou melhor, quase fomos; por quê? Sabe quando você sai para ir a algum lugar e
de repente acaba não indo? Pois é, não que o restaurante fosse ruim, pelo contrário,
é um estilo de ranchos australianos misturados a ranchos texanos: comida farta
e saborosa servida em um ambiente tipo saloon
na Barra da Tijuca ou no recém-inaugurado do Shopping Off-Price. Num diálogo repentino, sugeri comer nosso “atum light”
* com alface quando chegássemos em casa e sem maiores polêmicas, decidimos
economizar nossos reais. J
Um
domingo no Shopping seria tão idiota quanto votar na chapa Rosinha
/ “gordo”, que foi multador profissional... Mas, felizmente fomos salvos por
uma exposição de rádios antigos que acontecia. Por alguns minutos, ficamos
apreciando aqueles rádios enormes: Telefunkens, Philips, Philcos,
outras marcas, como se estivessem vibrando em chiados e nos levando no ruído do
tempo a pensar em tantas coisas... Pensei nas conversas que tinha com uma velha
senhora, pernambucana radicada nas Alagoas, casada com um caboclo na foz de um
velho “Chico”, que lhe roubou nas correntezas um filho de treze anos,
rio que já levara o irmão caçula Miguel
(preferido) para a Revolução de 30 e nunca voltou... Seguiu em
frente, acordava diariamente bem cedo, quem sabe era parente distante de algum
soldado, ferida nos galeões de Nassau? Formou quatro
filhos, ainda que estudassem longe (um contador e três enfermeiras). Ela tinha
um rádio daqueles sobre uma estante e durante a guerra ouvia os alemães
gritando e com medo corria a trancar-se no quarto. “Como ter medo vó? Eles
estavam tão longe”, ela alva respondia, me fitando com aqueles lindos olhos
azuis, mais ou menos assim: “E quem garantia, na época, que eles não chegariam
aqui? Eram as vozes que me davam medo filho, as bombas que ouvíamos...”
Quantas belas e vozes famosas também cantaram por aqueles rádios! Sei
lá: grandes notáveis fantasiadas em saltos, Nora Ney, Dalva de
Oliveira, Ângela Maria, tantos concursos e piadas que paravam o
Brasil! Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco Alves (esse
artista se foi como JK...), sim, estou viajando insone nesta madrugada,
escrevendo rádios ignorados em cantos, assim como muitos “senhoras e senhores”
que se emocionariam se vissem uma outra exposição... Lembrar da Tupi, da
Mayrink Veiga, da grande rádio Nacional naquele prédio que já foi
o mais alto de uma capital em frente ao porto, como se avisasse aos navios
guiados por frios “práticos” ou ao peso dos ancorados: aqui também existe
cultura, também somos grandes, fomos o terceiro país do mundo a massificar a
Televisão! De repente um gramophone, nossa! Que obra de arte, perfeita
para animar os cabarés da época, ainda que fossem perseguidos por pedras
derrubadas de uma Igrejinha rica em azulejos holandeses. Que construíssem o Forte
preservando-a lá, juntos, na mais bela praia urbana do mundo! Cabarés repletos
em chapéus, ligas femininas e fumaça de batom: seriam os eternos cachorrinhos
da Victor’s os culpados? J Deve ser da década de 20 ou será mais
antigo? Você tem um gramphone em
casa?... Mais adiante uma vitrola (daquelas de armário com lugar para guardar
discos de vinil e caixas de som embutidas), claro, essa era da década de 60,
me lembro quando era pequeno de uma igual na casa do Tio Pedro em Birigui/ interior de SP, mostrava-me um
televisor preto-e-branco, acho que Colorado RQ: “esta não é americana,
viu carioca?”.
Valeu Vó a inspiração! Por
alguns instantes nos distraímos naquela meca de consumo e cartões-de-crédito,
com seus McDonald’s em qualquer
lugar. Não compramos nada nem comemos a “fried onion” (uma entrada deliciosa) e
valeu muito aquele final de noite no Off-Price,
perto da sede do glorioso Botafogo Futebol e Regatas, porque foi cultural,
inusitado, rico e inspirou um breve texto que mando aos quatro ventos da
Mitologia, ouvindo FM na madrugada...
* Receita no livro.
Dr. Guto, Primavera
de 2002.