sexta-feira, 25 de janeiro de 2013


HOTEL LONDRES

                                                    Fonte: IMAGENS DA AVIAÇÃO NAVAL 1916/ 1923.
                                                               Editora Argumento, págs. 102,103.

Deste cenário não restou nada na paisagem do atual Posto 4.
O elegante Hotel de Londres, à direita, de frente para a praia,
foi demolido nos anos 40. Próximo a ele, o castelinho em que
morava o médico e barão Jaime Luiz Smith de Vasconcelos,
construído em 1915, a partir do projeto do arquiteto Antonio
Virzi foi ao chão em 1964. As outras casas e os pequenos
prédios também morreram para dar lugar a grandes edifícios.
       A avenida Atlântica já aparece pavimentada e duplicada,
obra do prefeito Paulo de Frontin em 1919. E aparece em
reformas, já que a grande ressaca de 1920 a destruiu em parte,
levando o prefeito Carlos Sampaio a refazer muitos trechos.
Em 1922, depois que Sampaio é substituído por Alaor Prata,
nova ressaca forte e novo estrago, o que levou a prefeitura a
usar alicerces de concreto. A largura que a avenida tinha nesse
período se manteve a mesma até 1968, quando então foi ampliada.
Note-se na parte direita da foto como havia áreas virgens de
construções.



BICAS DE UBERABA


A sopa de letras ia desfazendo-se em movimentos sem conexão: quanto mais molhadas, mais vivas se tornavam, até sumirem no redemoinho de riscos solares, amparadas pela borda mais suja e por um braço cansado. Vidas usadas em abundância sobre tintas gastas que evaporam notícias, diariamente, semanalmente, ao longo do anos, no aproveitar de jornais amontoados em algum canto e reciclados pela noite; o alimento dos que trabalham; o deitar de um cachorro ou simplesmente um brilho que limpa e dissolve  letrinhas.

           Era dia de feira no Bairro Peixoto, feira livre já ameaçada pela burocracia dos que governam, em vão: voltou ao recanto tranqüilo de Copacabana, velhas chácaras - tradição africana – espalhada  pelas freguesias e  cidades.  Verdureiros que um dia foram libertos e subiram os morros apenas com cestos de palha...  Nesses dias me intrigava: não tinha mais vigor e insistia em pendurar-se pelos batentes: “Dona, desce um pouco desta janela”. Com dificuldades e “cara amarrada”, foi dobrando-se ao apelo que entendera como ordem: “Doutor, ainda não terminei essa janela”.  Disse não haver importância e pedi novamente que não me tratasse com formalidades, pois não era cliente, o que por certo nem entendeu ou resistiu a entender, falando: “Sim Dr., mas não fica bem, né? O Sr. é patrão e sempre tratei meus patrões assim...”. Na verdade, era apenas um filho que, às vezes, encontrava-a trabalhando na casa de minha mãe, que também pagava outra faxineira mais jovem (continuam lá) porém, ainda assim, a pedido de um amigo da família, chamava-a quinzenalmente para ajudá-la. Quando apareceu com uma sacola de papelão, trouxe pouca muda de roupa e curiosidades distantes deste mundo: cantava trechos de O Guarani, músicas antigas e rápidas palavras pentecostais, completamente confusas... Recusava bifes de carne no almoço e era arisca a quaisquer solicitações de ajuda. Certo dia perguntei: “Dona, quantos anos a senhora tem?” Ela com maestria  conseguia trazer perguntas onde faltariam respostas: “Ih, já nem sei Dr., trabalhei muito no Hotel Londres...1 Bati muito amendoim na roça, às quatro da manhã...” 
            Aos poucos fui tentando entendê-la e sempre que podia, fazia questão de ir lá no meio da semana perguntar-lhe algo, interrompendo o serviço... Pretexto para novas conversas, sem que percebesse a tentativa de decifrar seus enigmas.  “Dona, onde a senhora nasceu?” Gravei a resposta: “Ih, faz tempo, nasci lá nas Bicas de Uberaba...” Em respeito, nada perguntava, só respondia (à sua maneira, respondia), depois retirava-se ao trabalho ou à cozinha.  Naquele dia inovou, sentando-se numa das cadeiras de laca da mesa (negra como ela), olhou-me fixamente sem torcer panos e com as mãos molhadas sobre o vidro, perguntou altiva: “Dr. o senhor conhece as Gerais?” Surpreso respondi algo sem importância na hora. Hoje, paro para refletir aquele momento: uma trabalhadora de 71 anos não estava apenas descansando. Pelo tom de voz, falava de Brasilidade: das Gerais! A quais “Sertões” estaria referindo-se? Como se no subconsciente perguntasse: “Vocês já andaram pelas estradas batidas de terra? Sabem o que é trabalho escravo? Sabem o que é ser “brasiguaio”? Na caatinga, nos seringais, no imenso cerrado”.  Eram palavras soltas de uma “candanga” do Sudeste, sofrida, doente de reumatismos, catarata em uma das vistas. Solteira, sem filhos, sem instrução, sem companheiros! Sem teto (morava num “quartinho” de empregada, no trabalho da irmã); assaltada na cidade, carteiras de trabalho perdidas (só restavam um documento de plástico azul: o CPF e sua fé); sem certidão de nascimento (milhões nesse país nunca tiveram uma simples certidão!) Ali, cantando Ópera...
          Por um instante queria ter dito sim! Que conhecia e mais de uma vez. Dizer sem ofendê-la, que existe um trem “Maria fumaça” que sai de São João Del Rey e segue pelas curvas de Mariana e Ouro Preto, descendo pelas terras de Chica da Silva, Chico Xavier e do Alferes Xavier, de um Mestre chamado Aleijadinho e candangos que carregaram nos braços Tancredo e JK... Outros trens correm rápido, carregados de minério baratos rumo à Tubarão e Vitória; de retirantes que vindos de Brasília, passam por Barbacena  (onde localiza-se a Epcar 2) e  seguindo,  fazem artesanato em pedra-sabão e potes de doces caseiros. Vêm rumo às grandes cidades, ignorando o Juiz de Fora, tão próximos do Rio. E lavam no Rio, conhecem as ladeiras de belos horizontes e um aeroporto distante que traz gente enganada pelos “coiotes” 3 e também descrentes de tudo.  Na cidade industrial de Contagem, lembro dos colchonetes no estádio, reuniões de estudantes e farta comida mineira. As águas de São Lourenço, Araxá, maravilhosas, termais e temos alguns amigos lá (inclusive pela Net) e convites para voltarmos. Bons mineiros de Matias Barbosa no Rio e em Portugal, amigos portugueses também: Lisboa, Faro, Viana do Castelo! Agora vou realmente viajando pelas Bicas de Uberaba... Culpa da Dona Luiza! Se deixei de falar, escrevo por ela, até descobrir que nascera em pequena cidade do interior e  seu pai era lavrador de feijão, que se emocionou ao assinar o nome etc.
        
 “Como a senhora não tem certidão de nascimento? Roubaram sua identidade?” Na tarde seguinte, após ligação de segundos para o cartório de Bicas, providenciei algo que esperava desde 1925. Levei-a de carro para tirar retratos e sorrindo sem chapa  (esquecera na pressa de sair), quando um funcionário pediu que “tocasse piano” naquele posto do Automóvel Clube (se ainda existe, sou sócio remido e tirei ali, carteira internacional de motorista). Mês seguinte, uma maratona de atestados médicos (postos municipais de saúde) e declarações por nós firmadas, que era pessoa idônea e bastante carente: exigentes e burocráticos  papeis – INSS - tentar um benefício de um salário mínimo – pouco, mas sobrevivência para alguém que lutou a vida inteira e  nem isso conseguiria mais ganhar ...
          Vejo pela televisão um dos mais sérios senadores que já passaram por aquele plenário azul e monótono, beijar o presidente que embarca rumo ao Taj Mahal, porque seu projeto de renda mínima foi sancionado: louvável iniciativa! Tento imaginar o que sentem estas pessoas  que desperdiçam oportunidades e são tão necessitadas. Indaguem os motivos: apenas são, jamais entenderemos! Concessão precária, já existia desde 1990, não sei precisar de memória,  conhecida como  Benefício B88, especial,  não divulgado ao grande público,  restrito à múltiplas exigências e  aos senhores da lei. Com certeza avançamos  um pouco. Descubro lendo (Rio de Janeiro/imagens da aviação naval), talvez idéia de um almirante chamado Max, quem tivemos oportunidade de ouvir, assistindo palestras na Ilha Fiscal, aprendendo  acerca do Centro Cultural da Marinha,  espaço merecedor dos mais altos elogios. Militar com tantos serviços prestados, ensinando inclusive a outros militares nacionalistas que honram a cultura deste país! No livro sob sua coordenação está uma imagem despercebida, entre dezenas instigantes, que por ousadia  vou escanear (melhor ilustração); assunto falado que  nunca conseguiria visualizar.Terá trabalhado desde menina nas chácaras?
           Vez por ano aparece religiosamente e está bem, obrigado. Mudou-se para o Cabuçu ou terá sido Xerém? Sei que foi morar com  uma prima, dividindo despesas. Mesmo evangélica, consegui cadastrá-la em uma Igreja Católica e recebe uma 2a cesta básica... Operou Catarata gratuitamente naquele brilhante projeto do ministro Zé Serra e está enxergando com lente importada! Tomando sol  pelas tardes, melhorou bastante o reumatismo e já fez uns seis recadastramentos na Previdência, maldade que sempre reclama, mas aprendeu a ir sozinha! Desconheço se chegou ao ponto de ir dançar nos bailes da 3a idade... Traz todo fim de ano uma garrafa de vinho Almadén, tinto (deve ter me ouvido comentando a qualidade dos vinhos do sul), e satisfeito estive a pensar: se ajudassemos mais às pessoas e bebêssemos sobretudo água, poderiamos ter  boas adegas em casa! J

                                                                Rio, 01 de fevereiro de 2004. 
                                                            Dr. Guto.


1 Hotel na orla de Copacabana, demolido nos anos 40
2 Escola Preparatória de Cadetes do Ar
3 Agenciadores de imigrantes ilegais










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